domingo, 30 de março de 2008

O PEQUENO PRÍNCIPE


























"My name it's mean nothing, my fortune is less.
My future is shrouded in dark wilderness.
Sunshine is far away, clouds linger on.
Everything I possessed - Now they are gone, they are gone..."

(Solitude - Black Sabbath, Master of Reality - 1971)


A gravidez de minha mãe nos deixava felizes pela espectativa de ter um nenê na casa. Até então o único nenê que nós tínhamos para babar era Klarisse, minha prima. Ela nasceu em 76 e ainda lembro de quando a vimos pela primeira vez, quando tia Rosely e tio Elson ainda moravam no condomínio Cidade Jardim. Lembro de Ana, sua babá, então uma indinha de uns 12 anos, pedindo para que não fizéssemos barulho, para não acordar a bebê.
Porém, agora teríamos o nosso nenê e isso nos deixava radiantes. Só uma coisa cortava o clíma desta feliz espectativa... já nesta época sentíamos uma certa... tensão no ar. Essa tensão vinha tomando contornos claros desde um episódio que se deu tão logo nos mudamos para o Mucuripe. Estávamos no trânsito na avenida Constantino Nery. O céu estava fechado e ia chover. Um engarrafamento se formou próximo ao estádio Vivaldo Lima. Não demorou muito, um caminhão passou raspando no doginho, o suficiênte para acabar com o para-lama do carro. Como é de praxe, o cidadão não parou para prestar contas e seguiu em frente, sem ligar para o prejuízo e o risco que causara.
Meu pai começou a esbravejar. Minha mãe começou a falar também até que o inevitável aconteceu:

_Porra, Maria! Também não enche o saco! Eu tô tentando resolver as coisas e tu fica ai falando merda!...

Minha mãe começou então se queixou que ele nunca tinha paciência com ela e começou a chorar. E de fato era assim, meu pai sempre impaciênte, minha mãe sempre impertinente. Aquela tensão começava a nos afetar, pois já não era possível eles a esconderem de nós. Havia, evidentemente, uma "normalidade" cotidiana, mas sempre entremeada de pequenos e constantes aborrecimentos. Uma vez, fomos a um casamento e tivemos de pegar uma estrada que se enfiava no meio da floresta e era mal iluminada. A primeira queixa de meu pai já foi o suficiente para causar uma reação de minha mãe. Não chegaram a discutir, mas a tensão se instalou.
Lembro que nesta noite minha mãe usava um longo vestido azul marinho, com vincos e uns pontinhos brilhosos no peito. Por um momento viajei entre o azul noturno do vestido e a escuridão da própria noite, que parecia tomar a estrada, só iluminada pelos faróis do carro. Não sei bem que delírio foi esse, mas eu estava sozinho, flutuando sobre a escuridão, vendo as estrelas se aproximarem como pontinhos brancos. De repente, eu era um homem de 30 anos fugindo em meu automóvel, em uma estrada escura.
Por fim, chegamos ao local onde se dava o casamento e eu acordei de meu sonho, ou delírio. Uma mulher magra e pálida como a Olívia Palito, do Popeye, veio nos receber, vestida de noiva. Mal recordo da festa. Lembro apenas que era em um terreno gramado, onde havia uma casa de madeira. Lembro ainda que meus pais tiraram uma foto com os noivos. A noiva era como descrevi, o noivo tinha um tipo indígena, de cabelos longos, pretos e lisos, e vestia um paletó branco adaptado à moda dos anos 70, com calças pantalona.
A medida que a gravidez de minha mãe progredia, as coisas ficaram um pouco mais serenas. Lembro que uma manhã meu pai resolveu levar eu e Marcus no cinema. Foi a primeira vez que fomos no cinema. Assistimos ao Pequeno Príncipe, um filme infantil bem psicodélico, para variar. Também pudera, o filme é de 1967, auge do psicodelismo. Antes do filme passaram desenhos animados (lembro de Lupe Lebo) e o Canal 100 (noticiário futebolístico). Depois, como era obrigatório na época da Ditadura, o papel da Censura, librando o filme.
Os dias continuaram serenas até a manhã em que minha mãe sentiu dores e foi levada para o hospital. ainda lembro dela entrando no Dodge. Quando o bebê chegou, eu fiquei meio decepcionado. O achei tão feinho. Na verdade, ninguém havia me lembrado que os recém nascidos geralmente não são bonitos, têm "cara de joelho", como dizem. Ele recebeu o nome de Caio Júlio. O que contrariou minha vontade e de Marcus, que queríamos que ele se chamasse "fofinho". Coisa de criança. Lembro que inplicávamos com o nome de Caio:

_Caio! Que nome feio! Eu "caio"!... _ reclamávamos.

Fiquei ainda chocado ao ver a época em que curavam o umbigo do bebê, pois ele chorava muito e aquilo me parecia uma tortura. Cheguei a evitar olhá-lo, pois me agoniava vê-lo com o umbigo daquele jeito. Mas não demorou muito para ele ficar fofinho como eu e Marcus queríamos. Minha mãe então inventou uma musiquinha para niná-lo e eu viajava nos tons verde-azul-opalescentes de seus chocalhos e outros berimbelos.

sexta-feira, 28 de março de 2008

MAIZENA

















Em 1977, vi pela primeira vez na TV manauara, uma propaganda falando dos conjuntos residenciais Mucuripe. Havia o Mucuripe I, o Mucuripe II e o Mucuripe III. Meu pai se animou em comprar uma casa e foi ver os conjuntos, que ficavam no Parque 10 mesmo, bem próximos ao Eldorado. Ele e minha mãe se agradaram do Mucuripe I, pois o II ficava numa ladeira ígrime e o III, ainda inacabado, próximo a um matagal.
Um belo dia, fomos ver a casa nova no Mucuripe I. O conjunto ficava na avenida Efigênio Salles, em frente a um outro conjunto também recente, o Jardim Itaóca. Quase ao lado do Mucuripe, ficava o Grêmio Guanabara, aquele da festa na piscina. Entramos com o Dodge Polara verde abacate de meu pai na rua calçada de pedras e o carro começou a chacoalhar. A princípio pensei que nossa casa seria logo a primeira, mas já havia um carro na frente. Continuamos a descer e eu já comecei a ficar puto porque nossa casa não seria a primeira. As casas passavam e nada de pararmos. Viajei um pouco neste momento, pois ao ver a rua do conjunto tão deserta, sem pessoas, lembrei daquela antiga canção de criança:

"Nesta rua, nesta rua tem um bosque
que se chama, que se chama solidão..."

Por fim, só para eu ficar realmente com raiva, paramos no fundo do conjunto, na última casa. Diga, qual criança quer ser a última em qualquer coisa? Saltamos e fomos ver a casa, que ainda estava em fase de acabamaneto. Transpondo o portão baixo, de tábuas de madeira, havia uma pequena passarela de blocos de pedra que terminava em um pequeno pátio. Depois do pátio havia um quintal. minha mãe já se alegrou:

_Olha esse quintal!

Eu, por meu lado, não via nada de mais em um quintal arenoso. Entramos e começamos a andar precariamente sobre as lascas de concreto que jaziam como um tapete de pedregulhos sobre o assoalho de azulejo. Minha mãe olhou para aquele ajulejado sujo e comentou o quanto ele era bonito. E eu, em minha cabeça de criança, me perguntava que merda de beleza os adultos vinham num chão sujo. Vimos os banheiros, de pias, vasos sanitários e bidês azul marinhos. Vimos os quartos, que meus pais comentavam ser de bom tamanho. Eram três, um deles era suíte. Por fim, fomos á cozinha, que minha mãe achou enorme e eu continuava me perguntando o que havia demais numa cozinha.
Depois disso, voltamos para casa e eu e Marcus já começamos a ficar alegres pelo simples fato de saber que íamos nos mudar para uma casa nova. A mudança por fim foi feita e nos alojamos na nova casa que, agora sim! arrumada e limpa, me parecia bonita. A única coisa que enfeiava eram nossos próprios móveis, que já estavam velhos e precisavam ser trocados.
Logo no primeiro dia, ao fim da tarde, minha mãe sentou-se em frente da casa, com um vestido longo, estampado, que ressaltava sua barriga de grávida. Estava ela na cadeira, quando se aproximou a vizinha da casa da frente. Ela era branca, bonita como a mulher do Leite Moça e também usava um vestidão, pois também estava grávida. Perguntou de quantos meses minha mãe estava e minha mãe disse que era pra outubro. As duas ficaram alí conversando "coisas de grávida", enquanto e eu e Marcus andávamos na rua, em frente de casa, começando a descubrir aquele novo mundo.
O novo mundo foi sendo descoberto aos poucos. Ao lado de nossa casa havia um terreno lamacento, que era à márgem de um igarapé. Sobre o igarapé havia uma ponte de madeira, que ligava á outra márgem. Na outra márgem, de terreno barrento e avermelhado, havia um galpão, onde se agrupavam os trabalhadores (e seu material: madeira, sobretudo) que ainda estavam de serviço no acabamento do Mucuripe II. Atrás de nossa casa havia uma pequena selva, que se estendia até o meio da Efigênio Salles.
Tudo era bem parecido com o velho oeste americano. Sabe aquele ambiênte agreste, que ainda está sendo desbravado... O cheiro de madeira nova que vinha do galpão do outro lado do igarapé. O vento fresco que batia à toda hora, sobretudo ao fim da tarde. O cri-cri-cri dos sapos que começava ao pôr do sol e o canto da cigarra, que parecia se espalhar por todo o horizonte. Lembro que eu olhava a ilustração do pacote da Maizena e viajava naquela aldeia de índios, que parecia estar num fim de tarde, graças ao amarelo da própria embalagem. Parecia até que estávamos vivendo naquele ambiênte.

quarta-feira, 26 de março de 2008

O BAILE DE MÁSCARAS















Mascarados no carnaval de Veneza



"Eu sou nuvem passageira, que com o vento se vai..."

(Nuvem Passageira - Hermes Aquino)


O carnaval mais antigo que lembro é o de 1976. Eu, minha mãe, meu pai e Marcus estávamos assistindo a um desfile de blocos. Era noite e a rua parecia "vermelha", por conta da iluminação, ou de alguma fumaça colorida que por ventura estivessem jogando no ar. De repente, o "Diabo" e o "monstro de Frankenstein" se aproximaram de mim e começaram a me pregar susto. Ao vê-los alí, tão próximos e "reais", com suas calças pantalona, comecei a chorar. Meus pais tentaram me acalmar, mas fiz tamanho escândalo que acabamos voltando para casa.
Quando somos crianças tudo o que experimentamos é "real". Não importa se é um sonho, uma fantasia, uma alucinação, o que quer que seja! Foi experimentado por nós, é real! Vivemos em uma espécie de Baile de Máscaras onde entre representar e ser, não existe muita diferença. Na verdade, a impressão que hoje tenho é de que quando temos menos de 5 anos, vivemos como que sob efeito de algum alucinógino, seja o LSD, a mescalina, a ayawaska...
Sendo assim, quando somos crianças, não relutamos em achar que o teto é um "chão" ao contrário e que no Japão, do outro lado do mundo, se vive de cabeça para baixo. Pensamos que o mundo é uma mera extensão de nossa cidade e que, basta andármos um pouco para chegármos em qualquer país.
Tudo para nós está vivo, somos animistas. O carro anda porque tem vida, como nós. Aliás, nessa época eu nunca conseguia lembrar como se entrava nos carros, às vezes pensava que era pela janela. As estátuas também são "vivas". Lembro que havia uma estátua de bronze sobre uma coluna, no meio da avenida Constatino Nery. Era uma musa, erguendo uma tocha. Eu achava que ela ficara cristalizada alí, pois em um tempo eróico, mítico, ela erguera aquela tocha e este momento glorioso, fora eternizado, com ela se transformando em estátua!
A época do baile de máscaras é rica em sonhos e imagens de conteúdo simbólico, como diria Jung. Lembro de um sonho que Marcus costumava contar. Ele caminhava por um deserto e avistava uma única árvore, ressecada, sem folhas, com rosto de mulher. Ele então se aproximava dela e perguntava:
_Quem é a senhora?
Ao que ela respondia em tom solene e sobrenatural:
_Sou a Mãe Árvore!

Eu também tive um sonho (ou foi um fato real, que foi engolfado por minha imaginação) muito interessante nesta época. Eu estava na casa de minha avó materna (na verdade, nunca estive na casa de minha avó! nem materna, nem paterna). Era uma casa de madeira, muito bem feitinha, bonita, de paredes pintadas de verde. Era noite e eu andava ansioso pela casa, esperando minha mãe chegar. Eu estava arrumado para sair. Às vezes me abaixava e ficava viajando nos diferentes tons de minha meia xadrez. Em determinado momento minha avó começou a falar com seu jeito de quase criança de cabocla grandalhona do interior:
_Vem cá, minha Bujáua (corruptela de meu apelido, Bujão)! Vem com a vovó, vem! Mãezinha logo vai chegar e levar o Celão pra passear! Vem com a vovó, vem!...
Mas eu continuava ansioso e olhava para a janela. Apenas via a noite e a noite envolvia a casa, como se a casa flutuasse no espaço sideral.
Na época em que tive este sonho (vamos chamá-lo assim), eu morava já no conjunto Eldorado. O Eldorado até hoje é uma espécie de cidadela encravado no meio do bairro da Chapada, tradicionalmente conhecido como Parque 10, devido a um antigo balaneário que lá existia, cujo nome era este. Entre as pessoas mais antigas, há quem chame de Parque 10 apenas um certo trecho do bairro, precisamente a parte onde era o balneário, próximo onde hoje é o Detran.
O Eldorado, antigamente, consistia no seguinte: nas primeiras três ruas, paralelas umas às outras, vinham algumas casinhas de tamanho econômico, de peredes geminadas, cobertas de azulejo, bem em moda nos anos 70. Esta seqüência de casas acabava em uma rua principal, que terminava em uma ladeira bifurcada. Do outro lado dessa rua, vinha uma seqüência de pavilhões de apartamentos numerados. Tinha a fileira A, a fileira B, a fileira C e a fileira D, sendo que parte da penúltima e a última ainda estavam em construção. Os pavilhões eram pintados de verde e azul clarinhos, sendo que os mais antigos já estavam com a pintura meio desbotada e suja. Depois da seqüência de pavilhões, vinha um parque de casinhas que, como minha mãe dizia, parecíam caixas de fósforo. Eram pequenos retângulos que, em blocos de três em três (ou seria quatro?...), tinham as paredes geminadas. Depois de você contar três (ou quatro) casas, vinha uma ruela que ligava à rua paralela. Para se delimitar o espaço entre as casas geminadas, foram feitos pequenos triângulos de concreto, de uns 30 graus, que descíam das paredes até à calçada.
Até a época em que morei no Eldorado, poucas ruas tinham asfalto. Depois do parque de casas, vinha uma imensa área desmatada, com chão de barro, que ficava lamacento quando chovia. Depois desta área, vinha o mato. Ainda lembro de um dia em que eu e Marcus andávamos com uma babá nesta área. Marcus viu um garotinho com um robozinho de brinquedo, que andava, movido á controle remoto. Ainda lembro do menino que devia ter seus quatro aninhos e andava também acompanhado pela babá. Era loiro e tinha os cabelos encaracolados como aquele personagem do Maurício de Souza, o Anjinho. Marcus encheu o saco de minha mãe para comprar um robozinho igual pra ele.
Mas nem só de brinquedos sofisticados vivem as crianças. Minha mãe sempre comprava para gente uns soldadinhos de borracha, ou plástico, bem vagabundinhos mesmo, mas que nos fazíam imaginar verdadeiras batalhas. Batalhas que se tornavam "quase reais", quando colocávamos nossos capacetes e empunhámos nossos revólveres de plástico, que fazíam tec-tec... Lembro que, uma vez, um amiguinho nosso, André (que era gorducho e um tanto convenido), foi brincar lá em casa e, para dar mais realismo a uma brincadeira de polícia, me lascou uma coronhocada com o revólver de brinquedo. Minha mãe quase bateu nele e durante um certo tempo ele não foi lá em casa.
Devo dizer também que André, que já tinha seus sete anos, preferia brincar com Marcus e não gostava muito de minha presença. Isso é regra na infância: a criança menor quer brincar com as mais velhas, mas estas a alijam. Esse detalhe fazia minha mãe gostar menos ainda de André. Porém, como toda criança, eu queria brincar, participar e em um certo dia, vivi meu primeiro dilema. Era hora do almoço e minha avó nos chamou para comer. Mas Marcus e André queríam continuar brincando. Eu fiquei na dúvida. Minha avó então me chamou para comer farofa com carne na caçarola, o que eu adorava. Escolhi então comer, mesmo com Marcus ficando com raiva de mim.
Porém, além das brincadeiras, havia o mundo mágico da TV. Eu e Marcus assistíamos todos os desenhos animados que passavam, os clássicos da Disney, da Warner, da United Arts e da Hanna Barbera: Pato Donald, Mickey, Pateta, Perna Longa e sua turma, os Flinkstones, Scoob Doo, Super Mouse (versão dos anos 50), Tom e Jerry e os heróis da Marvel, Hulk, Homem de Ferro e Homem Aranha. Havia ainda um desenho do Hércules. Isso sem esquecer a Pantera Cor de Rosa, o Pica-Pau e o Zé Colmeia (a versão mais antiga).
E até desnecessário citar que eu e Marcus adorávamos as séries e filmes americanos: Viagem ao Fundo Do Mar, Cyborg, A Mulher Biônica, Combate, As Panteras, James West, Bang-Bang, Daniel Boone, Chaparral, Brigada 8 e aquelas comédias antigas, como Guerra Sombra e Água Fresca, a Família Monstro, Jeanne É Um Gênio, A Feiticeira, etc...
Por outro lado, em nosso machismo elementar, nós detestávamos novela e implicávamos quando as empregadas as assistíam. Ficávamos na frente da TV fazendo careta só para tirar sarro das novelas. Lembro de algumas novelas ainda em preto e branco, e outras já coloridas. Lembro de Papai Coração, Anjo Mau e Locomotivas, que começou pouco antes de saírmos do Eldorado. Também recordo de uma vez que fomos à casa de um amigo de meu pai, Jorge Miwa e vimos, junto com Carolina e Cristina (filhas de Miwa) uma reportágem sobre um jogador de futebol que fazia um monte de gols (Pelé). Não esqueço de um "trágico" dia em que eu, Marcus, Carolina e Cristina estávamos assistindo desenho e Miwa e meu pai cheagram e mudaram de canal para ver um jogo de futebol. Assim mesmo, chegando e mudando sem dar satisfação para nós, as crianças. Aquela ainda não era uma época sensível para com a infância...
As coisas dos adultos são curiosas para as crianças. Lembro de uma noite, na casa do André, em que resolvemos, eu e Marcus, provar cerveja. Fizemos careta, achando amargo. Eu não entendia porque os adultos só gostavam de coisas "ruins", amargas, sem gosto, fumacentas (cigarro). Os adultos tinham mania de dizer que era bom tomar injeção, pois era para curar as doenças. Eu morria de medo de injeção, tomávamos às vezes no doutor Contente, outras vezes numa farmácia onde um farmacéutico com jeito de galã 70 (uns vinte e tantos anos, sorrisão bonito e barba, num estilo meio Che Guevara "aburguesado"), cujo o nome era o mesmo de meu pai, Edson, as aplicava. Porém, algumas coisas dos adultos eram legais, como Astrologia (detalhe, gostei tanto que hoje sou ástrologo). Ainda lembro das empregadas vendo o jornal e dizendo para mim e para Marcus:
_Teu signo é Balança! O teu é Peixe!
Foi precisamente nesta época, entre 1976 e o início de 1977, que comecei a me antenar para as músicas que tocavam no rádio. Tocava Goodbye Yellow Brick Road, de Elton John, direto. O clássico brega Não Se Vá, de Jane e Erondi, era a coqueluche do momento, assim como Soleado, de Daniel Santa Cruz Ensemble, que no Brasil ganhou uma versão gravada na voz do galã das novelas de Janete Clair, Francisco Cuoco. Aliás, eu sempre confundia Soleado com outro clássico da época, Tornerò, de I Santo California. Eu gostava demais de Nuvem Passageira, de Hermes Aquino e da então recém-lançada I Love To Love, de Tina Charles. Pouco antes de mudármos de casa, explodiu Stain Alive, dos BeeGees.
Foi também nesta época que aprendi a primeira lição de esparança de um ser humano: a de que o Sol vai abrir amarelo e radiante, o céu vai ficar azul e nós vamos poder cair na água! Lembro do dia em que fomos para o clube Grêmio Guanabara. Estavam lá Miwa e outros amigos de meu pai. Minha mãe teve dificuldades conosco, pois eu e Marcus tínhamos medo da fundura da piscina. As outras crianças, com aquelas boias de pôr nos braços, caçoavam da gente.
Depois, ouvimos a conhecida bozina do carrinho de sorvete! Todas as crianças correram para seus pais pedindo para comprar. Lembro de Carolina com os beiços lambuzados de sorvete de açaí, com o vento esvoaçando seus cabelos fininhos. O céu então se enchia de núvens de chuva, sem tirar a beleza deste dia, que se perdeu no provável ano de 1976.

segunda-feira, 24 de março de 2008

A ERA OBSCURA



















"O nascimento do novo homem", cena final de 2001 - Uma Odisséia no Espaço, Stanley Kubrick, 1968.



"So we grew up together, my mama-child and me"

(Rock and Roll Lullaby - Billy Joe Thomas, 1972)


Antes de mais nada, vamos fazer uma brincadeira: tente lembrar o mais para trás que você puder. Lembre de sua infância mais tenra... do dia em que você nasceu!... Não consegue?! Pois é, nem eu... Estas lembranças estão por demais distantes em nossa memória para que possamos acessá-las assim, como por brincadeira. Elas estão, por assim dizer, em nossa Pré-História, em nossa Era Obscura. Na Era Obscura estão todas as nossas memórias esquecidas, nossos momentos apagados, nossas lembranças não lembradas, enfim tudo aquilo que achamos que deve ter sido, mas não temo certeza se foi.
Geralmente, quando queremos "lembrar" dessa época, recorremos aos álbuns de fotografia, ou aquilo que resolvi chamar de "mitologia familiar": ou seja, tudo aquilo que nossos pais, tios e avôs contam a respeito de nossa tenra infância sem que possamos contestar a parcialidade da narrativa.
Porém, apesar disso, até que tem alguma coisa que eu consigo lembrar... Lembro de uma festa ou encontro que aconteceu lá em casa há muito tempo atrás. As luzes da sala estavam apagadas, só iluminadas pelo clarão da TV preto e branco. Nela passava uma antiga apresentação do Fantástico, que consistia numa coreografia com uma garotas bonitas, usando uma roupas brancas, colantes, com adereços prateados. Eu estava sentado numa banqueta de couro, preta. Na verdade ela não era bem uma banqueta, era o pequeno complemento de uma poltrona de couro, e servia para a pessoa descançar os pés. Eu estava alí sentado, vendo televisão e, por um momento, saí e acabei por perder meu lugar para um adulto, que ocupou toda banqueta com sua presença "espaçosa" de "gente grande". Era um "japonês", amigo de meu pai, que fumava seu cigarro como se ele fosse uma coisa muito saborosa. Ele deixou cair uma cinza no couro da banqueta e ela ficou com uma marca parecida com aquela marca de vacina que as pessoas geralmente trazem no braço. Eu não tenho esta marca...
Tenho também uma outra lembrança, talvez até mais antiga que esta. Eu estava numa casa, nos braços de minha mãe e ela levava uma mulher até a porta. A mulher estava de saída e era magra e feiosa. Ela usava uma camisa justa, com listras brancas e pretas e uma calça pantalona branca. Lembro dela já na rua, e eu e minha mãe no portão. Ela então se despede, acenando com a mão, soltando um calmo e bondoso sorriso, enquanto seus cabelos negros e lisos como de ínida (o tradicional tipo da cabocla amazônica) esvoaçam com o vento, pois o céu estava cheio de núvens carregadas, pronto para chover.
Nesta altura do campeonato, penso que você já deva estar se perguntando por que eu, enfim, estou com esse papo "errado" pro seu lado... Afinal de contas, eu nem sequer me apresentei... Pois bem, meu nome é Marcelo dos Santos Farias e nasci por volta das 03: 00 horas da madrugada do dia 09 de outubro de 1972, na então maternidade Ana Nery, em Manaus, Amazonas, Brasil. Sou filho de Edison Bentes Farias (então prestes a completar 40 anos) e Maria Raimunda dos Santos (então com 22 anos). Tinha já meu irmão mais velho, Marcus, então com um ano e sete meses.
À época em que eu nasci, nós morávamos numa casa no bairro da Cachoeirinha, da qual posso dizer que não lembro nada. A casa mais antiga que me recordo de ter morado foi a "casa do seu Paulo". Era assim que minha mãe chamava a casa em que nós morávamos quando eu tinha meus dois anos de idade. Seu Paulo era propietário, morávamos alugado.
Você quer saber como era a casa do seu Paulo? Então dê uma olhada novamente na foto que ilustra este blog... É essa casa aí. O menininho da foto sou eu. Atrás do pátio havia uma sala cujo assoalho era de tacos. Havia três quartos, um dos quais servia de escritório para meu pai. Atrás, no quintal, que era gramado, havia uma espécie de piscina, ou tanque de cimento cru, que minha mãe às vezes enchia com água da mangueira para eu e Marcus brincármos.
Nossa vida era calma. Meu pai trabalhava em seu escritório de consultoria econômica, minha mãe era dona de casa e eu e Marcus brincávamos o dia todo... ou brigávamos o dia todo!... Nossas personalidades logo se mostraram muito diferentes. Lembro que ele adorava quando minha mãe trazia tomate com sal para gente comer. Eu detestava! Ele gostava de amendoim, eu até hoje recuso. Ele adorava tomar leite morno na mamadeira. Eu só tomava papa de farinha láctea. Leite morno!... Credo! Só vomitando!... Ele era magro, eu era gordinho. Ele era chato pra comer, eu era guloso, comia tudo (com excessão do que já mencionei).
Lembro que uma vez, Marcus pegou um saco de estopa e propôs que brincássemos de carrinho. Ele se meteu dentro do saco e pediu para eu puxar. Como ele fosse, evidentimente, mais velho e mais pesado que eu, comecei a arrastá-lo com dificuldade. Em determinado momento, para imprimir mais força ao trabalho, dei um puxão com vontade. Marcus então escorregou para trás e bateu a cabeça contra o chão, tuull... Quase imadiatamente depois ele se ergueu. Ficou sentado, dentro do saco, sem dar uma palavra. Deseperado, comecei a sacudí-lo:

_Dinho! Dinho!...

Foi quando ouviu um choro fino como um gemido...

_Iiiiiiiiiiiiihhh....

Abri o saco e Marcus estava com os olhos apertados e aquele "sorriso" de choro, lágrimas escorríam por seu rosto. Então ele gritou:

_Mãezinhaaa!!!...

Minha mãe, porém, não estava sozinha para cuidar da gente. Tivemos várias babás. A mais famosa delas, por assim dizer, foi Jorgina. Ela foi minha babá e começou a trabalhar lá em casa em 73, aos 14 anos de idade. Ela me adorava e tinha o costume de me chamar de "meu filho". Foi ela quem me deu o apelido pelo qual fiquei conhecido na infância, bujão (por ser gordinho). Ela e minha mãe eram muito amigas, mas este apego exacerbado por mim gerou muitas brihgas entre elas. Minha mãe preferia Marcus e por isso Jorgina costumava dizer que ía fugir comigo.
Durante vários anos, minha mãe acusou Jorgina de ter me causado um acidente. Segundo ela, quando eu tinha menos de um ano de idade, Jorgina me embalava na rede e, num movimento mais brusco, fez com que eu caísse e batesse a cabeça. Noutra versão, eu engatinhava sobre a cama e Jorgina, descuidada, não viu quando eu cai pela beirada e bati a cabeça. Em outra versão ainda, esta de Jorgina, uma outra empregada me dava banho no tanque de lavar roupa e deixou eu deslizar e cair de suas mãos, fazendo com que eu batesse a cabeça na bairada de concreto. Todas as versões, no entanto, convergem no ponto em que minha mãe teve de pegar o chinelão de meu pai e me dar umas palmadas para eu poder chorar. Eu estava ficando roxo por estar sufucado.
A grande verdade no fim das contas, é que eu fui parar nas mãos do doutor Contente, famoso e tradicional pediátra de Manaus. Ele mandou meu pai fazer um eletroencefalograma em mim e me receitou uma medicação que tomei por vários anos: gardenal infantil.
Todo mundo tem um acidente feio na infância. Muitos, como eu, bateram a cabeça e foram, durante muito tempo, acusados de ter "problema de cabeça", como eu fui. Outros engolem bola de gude, moeda, metem o dedo na tomada, caem da árvore, enfim... Marcus também teve seu acidente de infância. Em uma ocasião ele caiu e abriu o queixo. Foi para o hospital, levou um bom número de pontos e até tirou uma antiga foto preto e branca, em que aparecia com um curativo no queixo, junto com meu pai e eu.
Além dos acidentes, temos nossos grandes feitos de infância. Minha mãe contava a história da noite me que eu "enfrentei" um ladrão. Ele estava fuçando as coisas na sala quando eu passei por alí, rumo ao quarto de meus pais, pois queria beber água. Minha mãe estava me levando para a cozinha quando encontrou a sala toda bagunçada. Ela então acordou meu pai, que ligou para a polícia. Enquanto me dava água na cozinha, ela ainda viu o rosto do ladrão a encarando por sobre o muro.
O sujeito havia levado uma pasta do meu pai que continha documentos e dinheiro. Esta pasta foi achada em um matagal próximo, não pela polícia, mas por Pingo, meu tio, irmão de minha mãe, que nesta época devia ter seus 13 anos de idade. Os docuentos estavam lá, mas o dinheiro havia sumido.
Eu não lembro bem quando saímos da casa do seu Paulo. Nem sei se ela ainda existe na Vila da Prata. Só sei que em 76 já morávamos em outra casa. Dela só restou estas parcas lembranças e umas poucas fotos, que sobraram de meu mais velho álbum de família.

domingo, 23 de março de 2008

PRÓLOGO




















Todos os anos, no município de Maués (estado do Amazonas), durante os meses do verão amazônico (de julho a outubro), os índios da tribo sateré mawé realizam um ritual dos mais interessantes: tratá-se do ritual da tucandeira, dolorosa prova de força na qual os meninos na puberdade se expõem às picadas de dezenas de tucandeiras, tipo de formiga amazônica cuja ferroada causa até febre. Os índios confeccionam luvas com palhas de arumã (uma palmeira amazônica) e prendem nelas as formigas previamente entorpecidas pelo timbó (líquido entorpecente retirado de um cipó de mesmo nome). As formigas acordam furiosas ao se verem presas á palha e é neste momento que os índios realizam a dança.
Uma vez, em 1984, vi uma apresentação da dança da tucandeira em uma reportagem da TV amazonense. Na ocasião, um menino de dez anos passou na prova e outro, de dezesseis, forte como uma tora de madeira, não conseguiu ir até o final, chorando e se contorcendo de dor.
Você deve estar se perguntando qual o sentido de tão bárbara cerimônia. Tratá-se de um rito de passagem, um ritual realizado para preparar os jovens para a vida adulta. Há muitos ritos de passagem, em diversas culturas. Os kioko, da Luanda, realizam uma circuncisão ritual nos meninos, os índios do Xingú enclausuram as meninas durante a primeira menstruação.
Mas e nós, "pessoas modernas", temos nosso rito de passagem? Temos alguma prova, ou ritual que nos prepare para a vida adulta? Talvez você lembre da crisma católica, ou da festa de debutantes. Talvez pense no primeiro beijo, na primeira transa, ou no vestibular. Mas estas cerimônias e acontecimentos não são ritos de passagem, pelo menos na acepção profunda em que estou colocando.
Qual seria então nosso rito de passagem? Você quer que eu lhe responda? Então continue essa conversa comigo, que mais adiante eu lhe respondo...

Marcelo Farias. Ilustração: Ritual da tucandeira numa aldeia sateré mawé.