domingo, 6 de abril de 2008

SAÇI





















...e lá vai menino xingando padre e pedra
e lá vai menino lambendo podre delícia
e lá vai menino senhor de todo fruto...

(Conversando no Bar - Milton Nascimento e Fernando Brant)



Quando chegamos no Mucuripe, eu e Marcus penamos um pouco em termos de amizade. André ficara lá no Eldorado e as únicas crianças com quem brincávamos eram os filhos da vizinha ao lado, dona Nazaré. Eram três ao todo, dois meninos e uma menina. Só lembro do nome do filho mais velho, Alexandre, que era um típico "menino 70": loiro, de cabelo de cuia, a la Brian Jones. Nossa amizade com eles era meio forçada, aquele tipo de amizade que sua mãe quer e você atura. Lembro que o único dia bacana na casa deles foi quando assistimos Disneylândia, numa tarde de sábado.
Teve também o infeliz dia de minha primeira festa junina. Dançar a quadrilha foi foda. Eu era cronicamente tímido e fiquei duro feito um pedaço de pau ao dançar com uma garotinha. Porém, mais infeliz foi o dia em que fomos para uma festa de aniversário em uma das casas mais acima. Minha mãe, devido á gravidez, não ficou conosco e simplesmente nos encostamos em um canto. O bolo era de isopor (uma moda ridícula daquela época) e não lembro de termos comido nada. Ao chegarmos em casa choramos e protestamos. Ao que me lembro, mandaram um pedaço do bolo e alguns salgados para nos consolar.
Foi assim até que surgiu uma aparição!... Um mulatinho magrinho, descalço e sem camisa, começou a passar lá na frente de casa. A primeira vez ela levava uns peixinhos dentro de um saco plástico, um aquário improvisado. A segunda vez, apareceu com uma espécie de maquininha voadora nas mãos (nada mais que um gerador de carrinho de brinquedo, munido de uma hélice improvisada). Passou olhando, deixando claro que queria chamar a atenção. Marcus foi então falar com ele. Seu nome era César e ele vivia agregado na casa do Tio.
César e Marcus fizeram amizade instântanea e no dia em que ele foi brincar a primeira vez lá em casa, ficou até as 22:00 da noite. Espelhamos todos os brinquedos no chão do quarto e esquecemos o tempo. Minha tia Conceição, irmã de minha mãe, que tinha seus 11 anos na época, não gostou nada da presença de César ali. Caboquinha pobre, do interior, ela estava servindo de nossa babá e achou César um molque mal educado.
Quando minha mãe e meu pai chegaram (tinham ido a uma festa), ela delatou o negrinho sem piedade. No dia seguinte, César apareceu lá em casa e minha mãe conversou sério com ele. Fez aquele interrogatório familiar de praxe, para saber se o neguinho era digno de brincar conosco. Por fim, ela própria simpatizou com César e ele começou conosco (mas sobretudo com Marcus) uma longa amizade.
Rapidamente ele se tornou praticamente "da casa", ainda que sofresse a má vontade e o preconceito de algumas empregadas. Uma delas, dona Tereza, chegou mesmo a ralhá-lo:

_"Mininu" "vilhacu"!...

Minha vó, quando o conheceu, não teve papas na língua:

_Quem é este "pritinhu"?

Meu pai, ainda que tivesse demonstrado certa cautela ao aceitar César, acabou por simpatizar com ele também. Desta forma, ele e Marcus se tornaram camaradas inseparáveis, assim que nem Cebolinha e Cascão. O que já era de se esperar, pois César era "moleque", "negro", saci! Ele nos levou para brincar na rua, para tomar banho de chuva, ou pior, para tomar banho no igarapé. Minha mãe não gostou nada disso, pois apesar do igarapé do Mindú (esse é o nome dele) ainda ser límpido (cor de guaraná) nesta época, ele já recebia os dejetos saídos dos esgotos dos conjuntos em volta.
Mas quem disse que isso nos fazia parar de brincar com César? Ao contrário, por isso mesmo brincávamos mais e mais. Marcus, então, parecia mesmo Pedrinho do Sítio do Pica Pau Amarelo (que estreou sua versão clássica nesse ano, 1977) encegueirado pelo Saçi Pererê. E qual menino não quer um saçi, para lhe apontar o caminho da rua, da terra, da vida?...