segunda-feira, 24 de março de 2008

A ERA OBSCURA



















"O nascimento do novo homem", cena final de 2001 - Uma Odisséia no Espaço, Stanley Kubrick, 1968.



"So we grew up together, my mama-child and me"

(Rock and Roll Lullaby - Billy Joe Thomas, 1972)


Antes de mais nada, vamos fazer uma brincadeira: tente lembrar o mais para trás que você puder. Lembre de sua infância mais tenra... do dia em que você nasceu!... Não consegue?! Pois é, nem eu... Estas lembranças estão por demais distantes em nossa memória para que possamos acessá-las assim, como por brincadeira. Elas estão, por assim dizer, em nossa Pré-História, em nossa Era Obscura. Na Era Obscura estão todas as nossas memórias esquecidas, nossos momentos apagados, nossas lembranças não lembradas, enfim tudo aquilo que achamos que deve ter sido, mas não temo certeza se foi.
Geralmente, quando queremos "lembrar" dessa época, recorremos aos álbuns de fotografia, ou aquilo que resolvi chamar de "mitologia familiar": ou seja, tudo aquilo que nossos pais, tios e avôs contam a respeito de nossa tenra infância sem que possamos contestar a parcialidade da narrativa.
Porém, apesar disso, até que tem alguma coisa que eu consigo lembrar... Lembro de uma festa ou encontro que aconteceu lá em casa há muito tempo atrás. As luzes da sala estavam apagadas, só iluminadas pelo clarão da TV preto e branco. Nela passava uma antiga apresentação do Fantástico, que consistia numa coreografia com uma garotas bonitas, usando uma roupas brancas, colantes, com adereços prateados. Eu estava sentado numa banqueta de couro, preta. Na verdade ela não era bem uma banqueta, era o pequeno complemento de uma poltrona de couro, e servia para a pessoa descançar os pés. Eu estava alí sentado, vendo televisão e, por um momento, saí e acabei por perder meu lugar para um adulto, que ocupou toda banqueta com sua presença "espaçosa" de "gente grande". Era um "japonês", amigo de meu pai, que fumava seu cigarro como se ele fosse uma coisa muito saborosa. Ele deixou cair uma cinza no couro da banqueta e ela ficou com uma marca parecida com aquela marca de vacina que as pessoas geralmente trazem no braço. Eu não tenho esta marca...
Tenho também uma outra lembrança, talvez até mais antiga que esta. Eu estava numa casa, nos braços de minha mãe e ela levava uma mulher até a porta. A mulher estava de saída e era magra e feiosa. Ela usava uma camisa justa, com listras brancas e pretas e uma calça pantalona branca. Lembro dela já na rua, e eu e minha mãe no portão. Ela então se despede, acenando com a mão, soltando um calmo e bondoso sorriso, enquanto seus cabelos negros e lisos como de ínida (o tradicional tipo da cabocla amazônica) esvoaçam com o vento, pois o céu estava cheio de núvens carregadas, pronto para chover.
Nesta altura do campeonato, penso que você já deva estar se perguntando por que eu, enfim, estou com esse papo "errado" pro seu lado... Afinal de contas, eu nem sequer me apresentei... Pois bem, meu nome é Marcelo dos Santos Farias e nasci por volta das 03: 00 horas da madrugada do dia 09 de outubro de 1972, na então maternidade Ana Nery, em Manaus, Amazonas, Brasil. Sou filho de Edison Bentes Farias (então prestes a completar 40 anos) e Maria Raimunda dos Santos (então com 22 anos). Tinha já meu irmão mais velho, Marcus, então com um ano e sete meses.
À época em que eu nasci, nós morávamos numa casa no bairro da Cachoeirinha, da qual posso dizer que não lembro nada. A casa mais antiga que me recordo de ter morado foi a "casa do seu Paulo". Era assim que minha mãe chamava a casa em que nós morávamos quando eu tinha meus dois anos de idade. Seu Paulo era propietário, morávamos alugado.
Você quer saber como era a casa do seu Paulo? Então dê uma olhada novamente na foto que ilustra este blog... É essa casa aí. O menininho da foto sou eu. Atrás do pátio havia uma sala cujo assoalho era de tacos. Havia três quartos, um dos quais servia de escritório para meu pai. Atrás, no quintal, que era gramado, havia uma espécie de piscina, ou tanque de cimento cru, que minha mãe às vezes enchia com água da mangueira para eu e Marcus brincármos.
Nossa vida era calma. Meu pai trabalhava em seu escritório de consultoria econômica, minha mãe era dona de casa e eu e Marcus brincávamos o dia todo... ou brigávamos o dia todo!... Nossas personalidades logo se mostraram muito diferentes. Lembro que ele adorava quando minha mãe trazia tomate com sal para gente comer. Eu detestava! Ele gostava de amendoim, eu até hoje recuso. Ele adorava tomar leite morno na mamadeira. Eu só tomava papa de farinha láctea. Leite morno!... Credo! Só vomitando!... Ele era magro, eu era gordinho. Ele era chato pra comer, eu era guloso, comia tudo (com excessão do que já mencionei).
Lembro que uma vez, Marcus pegou um saco de estopa e propôs que brincássemos de carrinho. Ele se meteu dentro do saco e pediu para eu puxar. Como ele fosse, evidentimente, mais velho e mais pesado que eu, comecei a arrastá-lo com dificuldade. Em determinado momento, para imprimir mais força ao trabalho, dei um puxão com vontade. Marcus então escorregou para trás e bateu a cabeça contra o chão, tuull... Quase imadiatamente depois ele se ergueu. Ficou sentado, dentro do saco, sem dar uma palavra. Deseperado, comecei a sacudí-lo:

_Dinho! Dinho!...

Foi quando ouviu um choro fino como um gemido...

_Iiiiiiiiiiiiihhh....

Abri o saco e Marcus estava com os olhos apertados e aquele "sorriso" de choro, lágrimas escorríam por seu rosto. Então ele gritou:

_Mãezinhaaa!!!...

Minha mãe, porém, não estava sozinha para cuidar da gente. Tivemos várias babás. A mais famosa delas, por assim dizer, foi Jorgina. Ela foi minha babá e começou a trabalhar lá em casa em 73, aos 14 anos de idade. Ela me adorava e tinha o costume de me chamar de "meu filho". Foi ela quem me deu o apelido pelo qual fiquei conhecido na infância, bujão (por ser gordinho). Ela e minha mãe eram muito amigas, mas este apego exacerbado por mim gerou muitas brihgas entre elas. Minha mãe preferia Marcus e por isso Jorgina costumava dizer que ía fugir comigo.
Durante vários anos, minha mãe acusou Jorgina de ter me causado um acidente. Segundo ela, quando eu tinha menos de um ano de idade, Jorgina me embalava na rede e, num movimento mais brusco, fez com que eu caísse e batesse a cabeça. Noutra versão, eu engatinhava sobre a cama e Jorgina, descuidada, não viu quando eu cai pela beirada e bati a cabeça. Em outra versão ainda, esta de Jorgina, uma outra empregada me dava banho no tanque de lavar roupa e deixou eu deslizar e cair de suas mãos, fazendo com que eu batesse a cabeça na bairada de concreto. Todas as versões, no entanto, convergem no ponto em que minha mãe teve de pegar o chinelão de meu pai e me dar umas palmadas para eu poder chorar. Eu estava ficando roxo por estar sufucado.
A grande verdade no fim das contas, é que eu fui parar nas mãos do doutor Contente, famoso e tradicional pediátra de Manaus. Ele mandou meu pai fazer um eletroencefalograma em mim e me receitou uma medicação que tomei por vários anos: gardenal infantil.
Todo mundo tem um acidente feio na infância. Muitos, como eu, bateram a cabeça e foram, durante muito tempo, acusados de ter "problema de cabeça", como eu fui. Outros engolem bola de gude, moeda, metem o dedo na tomada, caem da árvore, enfim... Marcus também teve seu acidente de infância. Em uma ocasião ele caiu e abriu o queixo. Foi para o hospital, levou um bom número de pontos e até tirou uma antiga foto preto e branca, em que aparecia com um curativo no queixo, junto com meu pai e eu.
Além dos acidentes, temos nossos grandes feitos de infância. Minha mãe contava a história da noite me que eu "enfrentei" um ladrão. Ele estava fuçando as coisas na sala quando eu passei por alí, rumo ao quarto de meus pais, pois queria beber água. Minha mãe estava me levando para a cozinha quando encontrou a sala toda bagunçada. Ela então acordou meu pai, que ligou para a polícia. Enquanto me dava água na cozinha, ela ainda viu o rosto do ladrão a encarando por sobre o muro.
O sujeito havia levado uma pasta do meu pai que continha documentos e dinheiro. Esta pasta foi achada em um matagal próximo, não pela polícia, mas por Pingo, meu tio, irmão de minha mãe, que nesta época devia ter seus 13 anos de idade. Os docuentos estavam lá, mas o dinheiro havia sumido.
Eu não lembro bem quando saímos da casa do seu Paulo. Nem sei se ela ainda existe na Vila da Prata. Só sei que em 76 já morávamos em outra casa. Dela só restou estas parcas lembranças e umas poucas fotos, que sobraram de meu mais velho álbum de família.

2 comentários:

Ana Kaya disse...

Nossa que legal este texto, vc contou sua vida em poucos minutos.
Eu tb tenho algumas lembranças esparsas, mas queria mesmo era entrar na área obscura e lembrar de mais coisas, agora não tem mais ninguèm pra perguntar, sem pai, sem mãe, sem irmãos, sou filha única. nossa deixa eu parar senão eu é que acabo contando a minha história.
Adorei.

Ana Kaya disse...

coitada da Jorgina.
Eu não bati a cabeça quando criança, mas fiquei doida do mesmo jeito ehehehehhe.
Me lembro um dia que caí de bicicleta e o guidão bateu com tudo no osso abaixo do umbigo, se é que me entendes. voltei pra casa morrendo de chorar, sem conseguir andar direito e ainda levei uma surra do meu pai por andar de bicileta que nem louca, fala sério, meu pai era muito ignorante.
Mas eu amava ele demais, ele morreu faz quase 5 anos e eu sinto falta dele. mesmo ele morando em itamaracá em pernambuco e eu aqui.
agora sou sozinha, sem ninguem. não tenho filhos, só uma cachorrinha e um namorado que não sei até onde vai.
ai ai, tenho saudades dos bons tempos. não era obscuro não, era luz pura.